terça-feira, 30 de março de 2021

A Arte-educação como resposta aos impactos do COVID

 



A educação é uma das áreas mais afetadas pelos impactos do corona-vírus de imediato e, consequentemente em médio e longo prazo, principalmente a educação infantil, que é promovida de acordo com a idade da criança, visando que esta desfrute da sua infância de forma integral, enquanto aprende. Depois do grupo 5, a criança segue para o ensino fundamental, independente de avaliações curriculares, pois a Base Nacional Comum Curricular considera que as experiências vividas na educação infantil promovem o aprendizado necessário para esta transição, e considera primordialmente a diversidade na infância, ou seja, que as crianças aprendem em tempos e proporções diferentes, conforme suas particularidades. O aprendizado não se dá de forma compartimentalizada, onde cada componente curricular é ensinado separadamente, e sim de forma interdisciplinar. Na educação infantil as experiências proporcionam o aprendizado, uma criança pode, por exemplo, aprender matemática à medida que vai conhecendo a estrutura familiar, quando identifica as pessoas com quem mora, quantas são, quem são, seus nomes e graus de parentesco. E para viajarmos ainda mais neste rio de experiências, a criança pode criar uma rima, um verso, uma estrofe ou uma canção apresentando sua família. A arte nem pensa em ficar de fora da educação infantil e é sobre isso que eu quero tratar aqui com as famílias e educadoras, e não vou me limitar à educação infantil oficial, mas à educação na infância, que compreende também os anos iniciais do ensino fundamental.

Pensando ainda os desafios na educação, imagine as crianças egressas da educação infantil para o ensino fundamental, neste contexto pandêmico, sua experiência em era uma sala cheinha de outras crianças com carinhas, cabelos e cores outras para colorir seu fantástico mundo de aprendizagem. Depois ela entra em um tempo de isolamento, quando as creches e escolas estavam, como toda a sociedade, tentando entender o cenário para se adaptar a ele. E agora se veem no ensino fundamental, onde a educação é compartimentalizada, em salas virtuais, vendo a professora e suas colegas do outro lado da tela e um mundo de livros do lado de cá, em uma experiência completamente diferente da realidade anterior.

Enquanto famílias com crianças matriculadas na rede particular, optaram por tirar a criança da creche ou escola de educação infantil, durante a pandemia, famílias com crianças matriculadas na rede pública de Salvador mantiveram as matrículas para garantir, inclusive, as cestas de alimentação, uma vez que é na creche e escola que as crianças fazem suas principais refeições. Com a turminha em casa, matriculadas ou não, a família se depara com o desafio de maior participação na educação da criança. Os domicílios não contam com os recursos pedagógicos das instituições educacionais e nem com uma equipe pedagógica habilitada para desempenhar este papel. Neste cenário, os aparelhos digitais surgem como um caminho, às vezes como um alívio. No entanto, é preciso considerar outras questões fundamentais como a saúde da criança. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda através do documento Menos Telas Mais Saúde que, crianças entre 2 e 5 anos de idade não sejam expostas a telas de aparelhos digitais por mais de 1 hora por dia. Sabemos que a realidade é outra em muitos domicílios, então é preciso que haja uma força-tarefa entre professoras e famílias parentais ou afetivas, para pensar sobre este cenário de desafios vividos pela educação e indagar-se sobre possíveis ofertas, soluções e caminhos para avançarmos, diminuindo os danos causados por este caos mundial e preservando a educação, para que nossas crianças tenham um presente  e um futuro de aprendizagem garantidos.



O desafio de fazer acontecer a educação está derrubando simbolicamente os muros e cercas das escolas e creches e destruindo ruas e estradas entre essas instituições e as casas. Estamos juntas mais do que nunca. É preciso perceber onde essa afirmação faz sentido, usar a criatividade e fazer acontecer. É assim que a arte responde. Em outubro do ano passado, iniciei um projeto que nasceu sob demanda a convite da psicóloga Naiane Pechir, que desejava presentear seus sobrinhos com oficinas artísticas. Adorei o desafio e mergulhei fundo nesta missão que chamei Oficinas Criativas. Foram cinco encontros brincando, aprendendo e criando arte, história, família, mundo e muitas outras coisas. Nestes momentos de arte-educação a criança vai desvendando seu potencial criativo e suas habilidades, a educadora, atenta vai percebendo tudo e propondo caminhos para desenvolver as potencialidades da criança, propor desafios e atuar na realização que é protagonizada pelas participantes. As Oficinas Criativas aconteceram semanalmente, com uma hora de duração, para crianças entre 6 e 12 anos que, durante os encontros se revelam artistas natas. É o que toda criança é, na verdade, não é mesmo? Artista e arteira. O que semeará este solo fértil é o adulto, educador ou familiar, com estratégias criativas a partir dos recursos e cenário disponíveis para o sucesso do projeto pedagógico. Nas Oficinas Criativas a arte, elemento que inspira a minha vida, contribui fazendo uso da proposta dos Campos de Experiências da Educação Infantil (para maiores informações, consulte a BNCC ou o Referencial Curricular da sua cidade), priorizando a experiência como ambiente propício para a aprendizagem e utilizando-se das linguagens artísticas, em diálogo com as narrativas das crianças e suas afinidades ou desafios. Os processos partem de um plano com metodologia de projeto e diretrizes pedagógicas pautadas na arte educação inter, multi e transdisciplinar, alinhadas a lacunas estratégicas que serão preenchidas com as expertises criativas da turma, culminando em um projeto de Arte EAD que rompe barreiras e cria pontes, onde a criança é a protagonista da sua história.

A seguir, dois vídeos que produzi e dialogam com este conteúdo.

 https://www.youtube.com/watch?v=uWK5rnx72NQ

https://www.youtube.com/watch?v=h5vydomO8lI



quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Eu sinto




Sabe?  Eu sinto falta de nossos corpos na história escrita. Ainda hoje, eu sinto.

Eu sinto falta de nossas palavras ditas, firmadas no presente, de nossas lutas em existir através delas ao longo dos anos que não se foram e os que estão por vir.

Eu sinto falta da voz de uma velha senhora mãe, mulher de cor que pisa na terra, fuma charuto e lava roupa na beira do rio, sustenta a família mercando ou cantando, administra as contas, o alimento das crianças e ainda roda a saia.

Eu sinto falta do sol raiando o dia nem tão quente, outono ou primavera chegando, eu sinto um friozinho gostoso da tarde de sol. Sinto saudade daquela saia rodando na praça, o couro comendo e o corpo sambando no centro. As alegrias da gente não podem ser descritas por uma retórica acadêmica. Eu sinto falta da vida lá fora.

A vida aqui dentro não para de viver. Educação é movimento, escutei um dia lá na Universidade,  da cacica Nadia Akauã e desde então eu me entendo nessa história dançante de um modo que nem sei dizer. Eu sinto falta de não precisar dizer, sabe? Eu sinto.

Eu sinto falta dos fatos nunca noticiados, que a gente vive e sabe. A história que é e chega aqui, mesmo acontecendo em outro lugar. O vento me avoaça e sopra de longe uma saudade que sinto.  Eu tenho saudade de ser Tupinambá. Tenho saudade da África Bantu.

Estou voando num buraco grande e vazio entre o agora e o tempo inteiro de todo o lugar. Eu, partícula vizinha de outra partícula, e outra, e outra que movimentam este lugar. Eu tenho saudade da roda onde todo mundo está. Roda, roda e todo mundo está.

Onde estão Ginga e Conga, Janaína e Tarumin, se não em mim?

Aonde está o agora e quantos agora cabem aqui em quem eu sou?

Cabaça, útero, estupro, vísceras, semba, umbigo, movimento, parentas, sambaquis, tubarão, mangue, mãe, folhas, caruru, ladeira da misericórdia, vó miúda, minha terra, benim, capoeira, angola, popó, maculelê, bahia de dona dalva, zelita, aurinda, nenete, dona ana, matarandiba, saubara, santo amaro, são tomé, trem, sertão, recôncavo, papel rosa, escola, roda, atabaque, tremor, candomblé, toré, medicina, mulher...

Eu sinto falta de mim e isso não é um problema.

Estou aqui.

Eu sempre estive aqui.

 

Tempo-gira



 Agô! Malembe! Bandagira! Saravá!

Quanto sangue escorre entre a vida e a morte?

“Na minha aldeia gira sol e também a lua. Que tempo é esse, meu Deus?”

Ah, mulher...

Mulher corpo corpa cores corre escorre escorrega

Senta brinca no chão do terreiro

Pila pilão

Pisa pé firmado de leveza

Amassa o barro massapê

Escorre escorrega corre

Cai não cai

Canta Iaô  Kota Mametu Cacica

Canta praia canta folha canta tudo

Larga o doce que é seu

É mel

É meu

É minha história

E na minha natureza, essa história conto eu

Folha fresca

Folha seca

Bate folha

Pisa chão vento avoa

Reza ri

Benze banho tempo

Banzo água agora

Saudade. Quem sabe da minha sou eu

 

Quantos tempos cabem neste agora?

 

 

sexta-feira, 13 de abril de 2018

capoeira

eu firmei a mão
os dedos no chão
aú de cabeça no chão
as presas, meus dedos
são garras no chão

ele não haverá de saber
seu renê
a capoeira que me traz
vem de trás de mim
faz eu de mim

lagarta macaca cobra dendê
água que corre
beleza
muita natureza
meu nome é capoeira

sexta-feira, 30 de março de 2018

Aarakshan

fonte imagem: https://en.wikipedia.org/wiki/Aarakshan

Acordei de madrugada depois de cinco horas seguidas de sono. Despertei quando estava em Porto Alegre, na casa de minha vó Miúda lá de São Félix, com minha irmã abuelita Jorgelina, que é argentina e mora na Ilha de Itaparica. Os sonhos tem dessas. Desvendar que é o mistério.
Bebi água, tomei banho e fui buscar um filme. Sem paciência para arte panfletária, sem estrutura emocional para algumas questões específicas como racismo e colonização das américas, na intenção da arte política, encontrei Aarakshan.
Várias queixas*! 

De primeira, senti identificação com as personagens do cartaz. É Indiano. Massa! Na sinopse a presença de questões que me interessam: cotas e educação. É esse! (...) Menino... Duas horas e quarenta e três minutos de filme. É mesmo? Beleza, vamos lá. Já me pegou. Nada nada** eu pego no sono. Só o fato de não ser hollywoodiano já gera uma expectativa diferente. Várias relações, no entanto, com clássicas produções norte-americanas, e peculiaridades indianas de se encantar.

Longe da intenção de análise crítica de um filme, estou aqui enquanto estudante universitária de pós-graduação, graduada em universidade federal na cidade de Salvador, moradora do subúrbio que frequentou a melhor escola particular da região, até a sétima série, quando fui para um colégio particular no Centro da Cidade, para classe média baixa. O ensino era de qualidade. Uma possibilidade aos filhos dos esforçados e uma alternativa antes do ensino público pros playboy e pras paty que nada queriam com a hora do Brasil. Fiz a oitava série e o primeiro ano lá em Nazaré, onde o Pelourinho é logo ali.
Depois fui para o ensino público na cidade baixa, onde boa parte dos colégios públicos agora são colégios militares com vagas bem concorridas. O salário de meu pai enquanto maquinista da Leste não deu conta das quatro mensalidades, mesmo priorizando a saúde e a educação diante de certas regalias. Ingressei na UFBA na primeira turma do curso de Bacharelado interdisciplinar em Artes, em 2009, para mim uma revolução da educação superior brasileira. Fui conhecer as cotas já dentro da Universidade, mas nunca achei que eu fosse merecedora delas, ou melhor, sempre achei que não tinha direito, pensando no fato de que tive acessos que muitas outras pessoas não tiveram, o que me dá certos privilégios.

A questão racial é sempre muito forte para mim. De tanto boiar num mar de classificações e preconceitos acerca de minha identidade, resolvi seguir meu coração, e encontrar nele as respostas para minhas inquietações sobre ancestralidade. Meu coração revela quem sou e o que tenho que fazer, quem são as minhas, os meus e por onde devo seguir para que elas e eles possam se desenvolver junto comigo. Com cabelos cacheados, tez da cor do céu quando ainda não é noite, mas o sol já se pôs, e  com a própria história arrancada, só me resta acessar a memória. É por isso que para saber quem sou, eu danço.

O filme é baseado na política de reserva de vagas em empregos e universidades. O termo aarakshan quer dizer reserva em português, segundo dicionário virtual. Na Índia a separação se dá por castas e as cotas são por necessárias reparações semelhantes às nossas: as diferenças sociais, que aqui no Brasil se dá principalmente na dimensão racial, herança colonial escravista que marca nossa história.
O filme evidencia fraudes e farsas do capitalismo e o seu poder de manipular e controlar áreas estruturais de uma sociedade como a educação, ao mesmo tempo que põe a educação e a força dos mestres acima deste poder material, efêmero e oportunista. 
Tem um tanto de utopia e um muito de possibilidades. Uma trilha sonora envolvente demais, uma fotografia rica e dinâmica. Elementos culturais que nos aproximam do território sem nos distanciar das nossas questões. Um filme de causa irmã à nossa aqui no Brasil, necessário de ser visto por mestras, mestres, educador@s, educandos, mães, pais, filhos, parentes... 
Através da abordagem do acesso à educação superior, Aarakshan, propõe reflexões sobre amor, ética, o mágico presente na simplicidade e no clichê, a infinitude do invisível e como tudo brota e vive por meio da educação. Como ela revoluciona tudo e expõe o potencial criativo de todo ser. Toda flor desabrocha com educação, toda semente dá planta e toda árvore sombreia. E é isto que temem os detentores do poder: a educação revela que não são os únicos capazes, tão pouco melhores que ninguém, como desejam suas posições sociais e raciais nos convencer, discreta e descaradamente. Dá pra ver a angústia da ameaça em seus olhos.

Muitas cores na produção, lindas mulheres com vozes fortes, cumprindo papéis necessários em territórios dominados por homens e seus pactos oportunistas. Me senti representada, ainda que os protagonistas sejam dois heróis de batalhas, no final quem junta todas as pontas soltas e faz uma amarração circular e equilibrada é a sabedoria de uma mulher. É a mulher. 
Não vejo problemas em apoiar e ser orientada por um homem ou seguidora de suas ideias e filosofia, desde que sejam propostas que contemplem o coletivo. E isso é muito feminino. 

Caminhamos junt@s e assim somos muito mais fortes; estamos entrelaçad@s nas relações e lugares comuns. Precisamos nos dar conta do mal que todo tipo de segregação nos trouxe até hoje, reparar os erros e seguir alinhados em condições e possibilidades, para que os méritos sejam representados pelo potencial real de cada um, e não pelas oportunidades que teve às custas do fardo pesado de outrem.

Enfim... com o dia amanhecendo e o cabelo com uma passadeira de cocó***, resolvi esticar mais um pouco a jornada digital para compartilhar os pensamentos e sugerir, aconselhar, pedir, talvez até implorar que assistam, todas e todos. Precisamos dessa reflexão.

Sem cunho comercial, mas facilitador, tá na Netflix. 

Bom dia. Bom feriado. Boas reflexões.



*vários babados, várias histórias, muito assunto.
**se não der certo, se não acontecer como planejado.
*** penteado que divide e enrola o cabelo só na parte da frente